1. ANTONIO AUGUSTO DOS REIS VELOSO
Brasilia, 31 de março de 2015.
Amigos,
Texto requintado, de rara beleza:enigmático, labiríntico.
Antonio A. Veloso
TEXTO: “Uma rua de Roma”, de Patrick Modiano, Editora Rocco, 1978-2014, 222 páginas.
Só agora estou tendo acesso à leitura dos textos de Patrick Modiano, francês, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2014. Aqui no Brasil, foram lançados no ano passado cinco obras de sua autoria pela Editora Rocco: “Uma rua de Roma” (1978), “Ronda da Noite” (1969), “Remissão da Pena” (1988 ), “Flores da Ruina” (1991), “Dora Bruder” (1997). A Editora Companhia das Letras reeditou “A Neve estava suja”, de 1948. O autor, hoje com um total de 40 livros, sendo 30 romances, lançou o seu primeiro livro em 1968, aos 23 anos (“Place de l’Etoile”). “Uma rua de Roma” (Rue de Boutiques Obscures), romance ora comentado, recebeu dois prêmios: o prêmio máximo francês, o Gongourt, e o Grande Prêmio de Romance da Academia Francesa. Recentemente, Modiano foi consagrado com o Prêmio Nobel de Literatura de 2014. Autor, ainda, de obras infantis e de não ficção, dedicou-se também à redação de roteiros cinematográficos, destacando-se o filme famoso do diretor Louis Malle, em 1974, Lacombe Lucien. O romance “Uma rua de Roma”, a exemplo do que ocorre com quase toda a obra de Modiano, tem como pano de fundo o contexto da ocupação alemã da França, nos anos de 1940 a 1944. Ele relata a história fragmentada de um homem em estado de amnésia, Guy Roland (ou seria Pedro McEnvoy, ou Jimmy Stern?), na busca do seu passado nebuloso: trata-se de uma sucessão de encontros e desencontros, uma série de personagens aparentemente relacionados com a sua história (incontáveis personagens), ambientes com clima de cinema noir, misterioso, labiríntico, no clima sombrio de Paris daquele período e que,ao final, se estende por outros ambientes e locais, incluindo Bora-Bora. O autor constrói um personagem intrigante, girando vertiginosamente em torno da vida esquecida ou perdida, sem encontrar o fio da meada: o final do livro não encerra a investigação, não elucida o mistério. È como diz o personagem desordenado, na carta que dirige ao seu parceiro de Agência de Investigações: “Até aqui tudo me pareceu tão caótico, tão fragmentado ... Farrapos, estilhaços de alguma coisa voltavam a mim bruscamente ao longo de minhas investigações ... Mas afinal, talvez seja isso, uma vida ... Será que se trata realmente da minha? Ou da de um outro dentro da qual escorreguei? “ O livro, intitulado originalmente “Rue des Boutiques Obscures”, se liga a uma rua efetivamente existente, “rua que, na década de 1930, integrava o gueto judaico romano, donde o título da edição brasileira: Uma Rua de Roma”.
2. ENA GALVÃO
Uma Rua de Roma
Autor: Patrick Modiano
Apreciação por Ena de Araújo Galvão
QUEM SOU EU?
Essa é a pergunta angustiante que acompanha nosso protagonista durante todo o enredo. Depois de perder a memória em uma aventura em que ele e esposa buscam atravessar a fronteira da França para a Suiça fugindo da guerra. Não se lembra do que aconteceu quando foi abandonado por seu guia. A neve era forte e tudo estava branco. Assim também estavam sua cabeça e coração. Depois desse incidente nada restou de indicativo de sua história de vida.
Como chegou a ser socorrido e cuidado por um detetive chamado Hutte que lhe forneceu documentos novos com o nome de Guy Roland? Também faz parte do mistério presente em toda a narrativa. Espaços, fotos, caixas, revistas e pessoas fazem parte da busca do fio da meada que poderia levá-lo a reconstruir sua identidade.
Em vão.
Tudo indica que foi casado com uma francesa chamada Denise e que, pelas fotos, muitas pessoas reconheceram o casal. Também não se sabe que rumo tomou ao se separarem na fronteira. Muitos encontros e poucas pistas e chega-se ao final do livro realmente deixando a tos com a mesma pergunta: afinal, Guy Roland, Pedro
MCEnvoy ou Jimmy Stern são a mesma pessoa?
Esses são diferentes nomes pelos quais nosso personagem central foi
reconhecido em suas andanças. Tudo indica que a resposta ao mistério que envolve sua vida está na Rua de Rome – 97 – em Paris. Ou estará na Itália na Rua de Roma?
A leitura do livro é boa e a linguagem simples e agradável. Os capítulos são curtos o que não cansa muito o leitor. Para um romancista consagrado como Modiano, minha expectativa era maior.
3.MURILO MOREIRA VERAS
O FIO DE ARIÁDNE MODIANO
Murilo Moreira Veras
1. O Autor
Prêmio Nobel 2014, o escritor francês Patrick Modiano é autor de 40 livros, dos quais 30 são romances, portanto é um romancista. É badalado na França, decantador de Paris. Recebeu o prêmio máximo francês, o Goncourt e o Prêmio de Romance da Academia Francesa justo por este livro “Uma Rua de Roma” – em francês Rue des Boutiques Obscures. Escreveu roteiros cinematográficos (Lacombe Lucien, em parceria com o cineasta Louis Malle, em 1974), também autor de livros infantis e não ficção. Enfim: é um verdadeiro “gênio” esse “admirado e festejado pela irretocável beleza de seu estilo claro e fluente” que é Patrick Modiano.
2. O Livro, suas Nuanças
O título em português não revela muita coisa, é vago “uma rua de Roma”, melhor e mais adequado o original, em francês “Rue des Boutiques Obscures”. Porque é a história que se passa numa rua de obscuras boutiques, misteriosos lugares, pessoas erráticas, personagens que se sucedem quase aleatoriamente, nomes difusos – tudo para, numa sequência de capítulos, também confusos, realçar a amnésia do personagem principal. Aliás, ninguém sabe realmente quem é esse personagem. Guy Rolland, auxiliar do detetive C.M.Hutte? Howard de Luz que também pode ser seu avô? Pedro McEvoy, espécie de boa vida? Pedro Jimmy Stern, mas este teria desaparecido em 1940? O que se sabe é que ele, Guy Rolland, não sabe quem realmente ele é e busca, de forma difusa e como diz o francês, “nonchalement”, quer dizer, preguiçosamente, sua verdadeira identidade, pois perdeu a memória.
Não há negar, é uma narrativa singular, mas extravagante. Para se ter uma ideia da extravagância do autor, seu livro contem nada menos que 35 personagens e cerca de 54 lugares que o tal Guy Rolland percorre ou são apenas citados. O intuito do autor é esgarçar a trama, torná-la cada vez mais confusa, labiríntica, desnortear o leitor, a meu ver, à guisa de uma novela policial ou policialesca. Nosso Rubem Fonseca faria melhor, embora sem o charme desse premiado Modiano. Outro que Modiano quer imitar, mas está longe, em estilística e logística ficcional, é John Le Carré, cujas novelas primam pela aventura, mistério e muita ação.
O livro lê-se quase de um fôlego. O autor propõe logo de início um enigma para o leitor decifrar, ou melhor vai guiando-lhe os passos para, ao final, ousar encontrar o resultado. Ocorre que não existe “the end”, como nos filmes noir. Então a narrativa do Sr. Modiano não deixa de ser uma história noir, de filme, não tem fim, é indefinida, obscura, enigmática.
A segunda orelha do livro parece nos dar uma suposta chave. “La Vie dele Bottegne Oscure”, que teria dado nome ao título do livro, é uma rua existente em Roma que, na década de 1930, integrava o gueto judaico italiano.
Que chave seria essa? O que essa narrativa quer se referir, melhor, o que representa esse Guy Rolland, desmemoriado, a buscar sua verdadeira identidade? Uma tarja na orelha tematiza: “...Uma narrativa esplendorosamente labiríntica, da qual o leitor sai fascinado para sempre.”
Ousarei fazer uma elucubração a respeito desse enigma proposto pelo autor. Penso que Modiano, o autor, possa ter se inspirado em assunto da Segunda Grande Guerra Mundial. Digo mais, nos filmes de espionagem, notadamente um dos que se constitui, até hoje, um dos maiores enigmas cuja trama não foi elucidada, de maneira totalmente convincente. É o filme “Casablanca”, os protagonistas principais Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Ali não é um indivíduo só que busca resgatar sua verdadeira memória, é a própria história que quer se desvendar, em si mesma, nos personagens, os quais, observe-se, são todos aventureiros. O enredo é labiríntico. É época da Guerra. Há um americano perdido em Casablanca, dono de um bar, estilo americano, por onde passam inúmeros personagens, policiais, foragidos, espiões, vigaristas, todos ali se mistura, interagem. Fogem do famigerado conflito? Ou fazem parte dele? O americano (Bogart) teve uma paixão no passado, com a belíssima (Bergman), também desconhecida e que atualmente está casada com um foragido, talvez espião. Esses três personagens se encontram no tempo real do filme, em Casablanca, no bar do americano, na realidade também um aventureiro. Bogart vê reacender sua antiga paixão, mas ela, Ingrid, vive com um espião, de si, perseguido pela polícia. Bogart o esconde no bar, faz parte de sua paixão ajudar. Há uma intriga policial, o marido espião tem de ser repatriado para a Alemanha. Trocando em miúdos: o casal é descoberto, têm de partir num voo noturno fretado. E aquela cena final que simboliza toda a ideia do filme: o casal entrando no avião e Ingrid Berman, chorosa, mas lindíssima, acenando para seu ex-amante Boggart da porta do avião, enquanto este responde com aceno, longe. E o avião parte furando a neblina a envolver o cenário numa atmosfera de enigma e mistério.
Ora o nosso herói – melhor, anti-herói Guy Rolland, que é auxiliar do detetive C.M Hutte, está de partida, porque seu empregador está encerrando a atividade e vai fechar o escritório. O detetive sabe, nebulosamente, que Rolland perdeu e memória e que vai buscar encontrá-la, não sabe onde nem quando. Tudo é nebuloso. Ele pode assumir a identidade de várias pessoas. É Pedro McEvoy, que trabalha na Embaixada Dominicana, amigo de Porfírio Rubirosa – aquele célebre play-boy, na realidade grande vigarista internacional. Mas também pode ser Pedro Jimmy Stern (este teria desaparecido em 1940), bem como Howard de Luz. Qual deles é o verdadeiro personagem?
Na realidade, todos os personagens são vigaristas, de uma forma ou de outra. Ou são contrabandistas, indivíduos indolentes, sem caráter. Há inclusive um tal “Cavaleiro Azul”, que só se tem dele a voz e que parece até ser um assassino.
A narrativa segue um caminho vagaroso. Guy Rolland não parece muito preocupado, vai levando, com uma sucessão de fatos, até desimportantes. Apontam-se ruas, avenidas, cafés, hotéis (geralmente decadentes) de Paris, lugarejos. Os personagens às vezes surgem do nada, aqui e acolá se ligam à trama. Estes são sempre figuras erráticas, não há nada fixo na narrativa. O leitor fica ansioso – se é que há surpresa na leitura do livro, parece mais um filme “déjà vue”. Nada de novo no front dramático.
3. Um Fio sem Fim.
Ao final, a narrativa não tem fim. Guy Rolland não reencontra sua memória perdida, diz que vai para o Pacífico, quem sabe outro personagem fantasma o ajude, um tal Freddie. E é por isso que o livro tem esse nome “Rue des Boutiques Obscures”, porque tudo é obscuro, brumoso, o autor parece não encontrar apoio em sua história.
Outra versão interpretativa viável seria que o Sr. Modiano quer se referir à atmosfera, em Paris, à época da Segunda Grande Guerra. A vida não faz sentido, o mundo parece perdido. O gueto de “La vie delle Bottegne Oscure” em Roma é o mesmo gueto de Paris. O pós guerra é asfixiante, cria uma vigarice generalizada. O judeu deixou-se cordeiramente ser levado para os fornos nazistas. Nonchalement, sem reagir. Guy Rolland consegue se salvar do forno da mediocridade. Onde está a bela Denise Yvette Coudreuse? Caiu numa armadilha, a armadilha da fuga do inferno nazista. Ela própria uma ladra, uma vigarista, que se deixou prender? Denise seria Ingrid Bergman que perdeu também o amante. Não é um avião atravessando a neblina, mas um carro cujos viajantes foram aprisionados na fronteira.
4. Reflexões Ficcionais Recorrentes
O romance do Sr. Modiano tem qualidades ficcionais, está bem escrito, tem estrutura moderna, capítulos curtos, tanto quanto um “best-seller”, digamos “light”, desses que não visa o mercado fácil. Seu estilo é objetivo, mas, a nosso ver, falta-lhe agilidade, atmosfera de um verdadeiro suspense, como policial também falha, desprovido totalmente de ação. Romance de amor também não é, foge-lhe o sal, o necessário voyeurismo – inexistem cenas de sexo no livro. Em certos momentos decai na vulgaridade. Os personagens – que absolutamente não são redondos como requer a boa psicologia romanesca – são frágeis, evasivos, desfibrados de caráter. Muito diferente dos personagens, por exemplo, de um romance como “Trem Noturno Para Lisboa”, com figuras fortes, expressivas, bem urdidas psicologicamente.
Cá aos meus botões, fico imaginando se um romance como “Dom Casmurro”, se tivesse sido escrito por um autor francês, certamente teria arrebatado das mãos do S. Modiano o prêmio Goncourt que recebeu por este “Uma Rua em Roma” ou “La Vie des Boutiques Obscures”. E o que dizer da surpreendente novela “Noite”, de Érico Veríssimo, narrando as peripécias noturnas de um desmemoriado em Porto Alegre? Ou o interessante “Os Tambores de São Luis”, uma história do Maranhão vivido em um só dia por um personagem? E cito também a novela “Maria da Tempestade”, com que João Mohana estreou o modernismo em São Luis. Mas seus autores não são franceses, mas brasileiros cuja nação, o Brasil, segundo Charles De Gaulle “.. n’est-ce pas um pay sérieux.”
Bsb, 27.03.15
4. SANDRA FAYAD
UMA RUA DE ROMA, de Patrick Modiano
(por Sandra Fayad)
"Se você quando jovem teve a sorte de viver em Paris, então a lembrança o acompanhará pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa" - De Ernest Hemingway a um amigo, 1950.
O autor contemporâneo, Patrick Modiano, criou dentre outras obras, esta ficção, onde o protagonista da trama busca incessantemente por sua identidade. Tendo perdido a memória em um determinado ponto da existência, encontrou trabalho como auxiliar de um detetive particular, que lhe arranjou documentação mínima para circular como cidadão na sociedade parisiense e deu-lhe as chaves do seu escritório quando decidiu mudar-se para Nice, ao Sul da França. Com esse instrumental e algum dinheiro - não se menciona quanto - o anônimo circula pelas ruas, avenidas, praças, cafés, restaurantes e monumentos da Cidade Luz.
em busca de uma luz que o faça encontrar-se consigo mesmo.
Pretende que alguém em algum lugar lhe mostre quem de fato ele foi, e não apenas o que fez até perder a memória. Seria ele russo, latino-americano, inglês? Teria tido uma companheira, outra atividade, parentes. A obra na linha quase policial, sequer apresenta o conteúdo típico - suspense. É cansativa, e seria desinteressante, se não fosse a descrição bem formulada do cotidiano francês. Hemingway (1899-1961) é autor de "Paris é uma festa", obra que começou a escrever em 1957, terminou em 1960, e guarda grande semelhança com "Uma rua de Roma". Vejamos:
1. Ambos os livros foram escritos em cenários sequenciais. "Paris é uma Festa" cobre o período de 1921 a 1926, quando o autor viveu na cidade; em "Uma rua de Roma" a história se passa no início dos anos 60, referenciada no período que vai de 1910 a 1950.
2. Ambas as obras descrevem com riqueza de detalhes cada metro da cidade, em sua beleza arquitetônica contraposta com os labirintos escuros e ambientes mal cuidados, levando o leitor que já visitou Paris a caminhar junto com os personagens (aqui eu diria que um copiou o outro, tal é a semelhança).
3. Da mesma forma os encontros em restaurantes e cafés, as avenidas e ruelas da Saint Elysée ao Molin Rouge, a comunicação pessoal - tudo é marca cultural expressa também nos filmes franceses (confiança recíproca, sensualidade, tendência à depressão).
Da obra de Modiano refleti sobre esta frase: "Você tinha razão de me dizer que na vida não é o futuro que conta, é o passado.".
Bsb, 14-04-2015
Obs.: os autores Antonio Augusto dos Reis Veloso, Ena Galvão e Murilo Moreira Veras autorizaram a publicação de seus textos aqui. Brasília, 14-04-2015