LAÉRCIO, O DESASTRADO (*)
(CONTO Nº 2 DA SÉRIE OS HOMENS DA MINHA RUA)
Pelo binóculo o bombeiro Artur acompanhava bem Laércio lá no terraço do Bloco de 20 andares, no Setor Industrial. Ampliando um pouco via sua fisionomia. Os socorristas queriam definir a estratégia de ação que pudesse impedir o seu mergulho no asfalto. Os olhos fitavam o vazio, sem ver. Não piscava, nem chorava. O corpo inclinado para baixo estava também imóvel. Parecia que já havia morrido de véspera.
Vamos ter que trabalhar rápido, mas com cuidado - comentou o bombeiro com seu colega.
A prima de Laércio, que estava acompanhando a tentativa de resgate, contava à amiga que ele sempre foi uma pessoa de temperamento difícil. Ela mesma já havia tentado arrumar-lhe vários casamentos e empregos. As moças fugiam dele porque em pouco tempo percebiam que era incapaz de amar alguém e que demonstrava apenas interesse financeiro e patrimonial sobre o que possuíam. Os empregos não vingavam porque sua formação profissional e seu currículo não ajudavam e ele se saía mal nas entrevistas. Havia feito alguns cursos profissionalizantes, escrevia razoavelmente bem, mas não gostava de ser mandado e tinha horror a horários rígidos. Sentia-se preso, razão porque não conseguia se firmar em nenhum emprego formal na iniciativa privada. Submetia-se a concursos públicos para mostrar à família e à namorada ou companheira da vez que estava “caçando” um jeito de se estabilizar. Mas não obtinha êxito, porque não queria aquilo para a sua vida. Durante muito tempo viveu fazendo “bicos” rentáveis. Sua vida pregressa não era das mais elogiáveis. Ganhava dinheiro fazendo programas sexuais com gays, casais e senhoras carentes ou solitárias. Negociava pequenas peças de motos e de automóveis no câmbio negro. Vendia também livros raros que conseguia através de atravessadores.
Solteiro aos trinta e seis anos, Laércio gostava de usar as melhores roupas de grifes famosas, ter o melhor aparelho de telefone móvel, a melhor motocicleta, o melhor relógio. Aparecia para os amigos, e até para os vizinhos e frequentadores das reuniões e concertos musicais no templo que frequenta há um ano, como um rapaz de bom gosto, humilde, prestativo, gentil, educado. Na verdade, sua aparência de humildade escondia grande arrogância, revolta por ser pobre, agressividade e desejo de ficar rico sem fazer esforço. Mas usava bem essa aparência para obter muitos benefícios, especialmente das mulheres, que viam nele a oportunidade de explorar seus préstimos ou um candidato a marido carinhoso. Dotado de uma percepção bastante exata das aspirações femininas, saía-se bem em todas as oportunidades. Embora sua fisionomia deixasse a desejar - rosto ovalado, cabelos oleosos, orelhas em abano, olhos miúdos e sem brilho - possuía um corpo bem delineado. Com seu porte atlético de 1, 79 m e 83 kg conseguia ser ágil, parecia forte e era capaz de carregar bem um saco de cimento ou um baú de alimentos não perecíveis. A longa convivência com várias mulheres e gays de idade que variava entre 15 a 70 anos, de todas as classes sociais e das mais variadas experiências pessoais, permitiu-lhe reunir informações suficientes para convencer qualquer mulher casadoura a aceitá-lo para marido. Laércio sabia que seus pais há muito queriam vê-lo morando em outro lugar, pois na casa pequena que possuíam já havia gente demais comendo e ocupando espaço. Ele, que voltara a menos de um ano, depois de três anos ausente, era o primeiro a ter que se retirar, pois seu espaço já vinha sendo reutilizado para outros fins. Sua família estava também cansada dos seus altos e baixos e idas e vindas. Viviam com o dinheiro contado. Quando ele chegava endividado acabavam tendo que se reunir para socorrê-lo. Nas suas estadias em casa, o clima era tenso e até perigoso por causa da vida irregular que levava, de suas crises de depressão e da agressividade. Mas iam contornando e orando para que um dia ele saísse definitivamente.
Laércio, na última volta para casa, e sabendo de tudo isso, pensou em como iria resolver esse e os outros problemas de sua própria manutenção e conforto. Eureca! Embora ateu, começou a frequentar a casa de orações, onde algumas pessoas da sua família estavam habituadas a ir. Mas necessitou trabalhar bem para convencer os líderes a aceitá-lo. De pronto substituiu no seu Facebook , no Twitter e no Orkut quase todos os contatos do passado pelos que frequentavam a casa de orações. Começou a passar horas no seu pequeno computador postando frases e artigos da linha doutrinária do seguimento religioso e fazendo agrados aos novos amigos. Chorou “lágrimas de crocodilo” durante as sessões de bênçãos. Depois utilizou os vizinhos e as pessoas da família para dar boas referências da sua pessoa dentro da comunidade. Finalmente, colaborou exaustivamente com os projetos e eventos assistenciais, enquanto analisava detalhadamente os perfis da mulherada, ajudado pela pesquisa encomendada aos familiares. Sempre achou que informação é quase tudo. Enquanto isso foi fazendo apologia à virgindade, à honestidade, ao amor para impressionar as candidatas. Relacionou mentalmente os principais requisitos necessários (do seu ponto de vista), para que uma mulher o levasse ao casamento com comunhão de bens. Haveria de ter um bom emprego público, salário acima de cinco mil reais, carro próprio e confortável e, de preferência, casa própria. Beleza e idade eram requisitos dispensáveis, mas era melhor que não tivesse filhos (herdeiros). Após três meses de análise, escolheu Laura, uma moça miúda estrábica, pernas tortas e sem nenhum outro atrativo que não fossem os elencados por ele. A moça ficou agradecida a Deus por ter encontrado um rapaz que lhe fizesse tantos mimos. Logo ela, que não despertava "tesão" em nenhum dos homens do grupo de orações, do seu local de trabalho ou da sua vizinhança. Laércio percebeu que ali ia “dar samba” e foi “fundo” no assédio. Mesmo estando fácil, não queria se arriscar a mais um fracasso “casamentista”. Usou de todo o arsenal disponível para que ela não tivesse dúvidas quanto à sua paixão à primeira vista, idoneidade e desejo de constituir uma bela família, com filhos e netos. Repetiu centenas de vezes sua boa intenção, traçou planos e mais planos para os filhos que viriam do casamento perfeito, concordou com tudo o que ela dizia a respeito de relacionamentos, jurou fidelidade e amor eternos a partir do momento em que firmaram compromisso oficial. Não podia perder aquela oportunidade. Desempregado há mais de seis meses, endividado e desesperado, fingia tudo estar muito bem em sua vida. Contava uma “porrada” de mentiras para a moça, que cega de amor e esperança de felicidade eterna, acreditava em tudo. Confiava tanto nele que afastou-se dos amigos e dos familiares que quiseram abrir-lhe os olhos quanto a “esmola em excesso”. Alguns desconfiavam daquele rapaz aparentemente maravilhoso que tudo oferecia sem nada pedir em troca, e que às vezes parecia contraditório. Para que não ficasse nenhuma dúvida quanto às suas boas intenções, Laércio aproximou a moça de toda a família, que colaborou intensamente para a conclusão por ele desejada. Afinal, os familiares precisavam ajudar os velhos a se livrarem daquele peso a mais em sua casa. E casando o rapaz estava transferido o problema para a desconhecida, o que seria um alívio para todos.
Acontece que, para fingir fidelidade e amor à moça, Laércio ia estar com ela todos os dias em sua casa ou no templo. Isto atrapalhou um pouco as suas receitas financeiras com a clientela do sexo. As contas vencidas acumulavam-se. Laércio andou trocando algumas notas de dez reais por notas de cinquenta na bolsa da namorada e de outras pessoas distraídas no templo, mas, mesmo assim, faltava dinheiro. Foi aí que procurou o Jô, aquele gay ricaço que lhe dava uma boa bolada por um programinha noturno. Para isso, faltou ao encontro com a moça. Disse que ia fazer um trabalhinho fora da cidade e que não se preocupasse. Era para o bem do casamento, que estava agendado para dali a um mês e meio.
Tomou o ônibus e foi ter com Jô na Plataforma Superior da Rodoviária, onde sempre se encontravam. Foram até seu apartamento e, de lá, ao Conic assistir um show de nudez masculina para arrematar a noitada. Foi aí que Fun entrou fazendo o maior escândalo dentro da casa de espetáculo. Fun era o outro relacionamento de Laércio que não se conformava em vê-lo em companhia de Jô, seu arquirrival. A confusão foi tamanha que veio a polícia e levou os três para a Delegacia. Na imprensa, a repercussão foi enorme e imediata, com as fotos do trio estampadas na TV e nas primeiras páginas dos jornais: “Briga entre gays em disputa por namorado leva todos para a DP”. Essa foi a desgraça do Laércio. Por isto, ele estava ali no terraço do prédio de 20 andares, querendo se jogar lá embaixo.
Analisando a personalidade de Laércio, você acha que ele vai mesmo se matar?
(*) os nomes dos personagens são fictícios.