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Sandra Fayad Bsb
Minhocário de Palavras
Textos
O CANTO DAS CIGARRAS
 
                Muita chuva dominou o cenário de Brasília em outubro de 2006. Em boa parte do mês, a população enfrentou fortes temporais, transtornos e prejuízos, especialmente nas áreas habitacionais com a infra-estrutura ainda precária. Embora a vegetação mais encorpada agradeça, as plantinhas tenras sofreram e muitas até acabaram morrendo afogadas nas constantes enxurradas.
                No último fim de semana do mês ocorreu uma pequena trégua. Choveu apenas à tarde e à noite.
                O primeiro domingo de novembro amanheceu com o sol brilhando, para alegria dos atletas e caminhantes de plantão. Pouca gente deve ter ficado em casa, pois o passeio público dominical do Plano Piloto, mais conhecido por Eixão do Lazer, voltou a ter um grande movimento, apesar do feriado de finados na quinta-feira.
                Caminhante “viciada”, não deixei por menos.  Armada de bermuda, camiseta e tênis confortável, rumei para o cumprimento da doce tarefa de percorrer os seis quilômetros que separam a minha casa do ponto central da cidade. Cada passo percorrido é um novo prazer, instalado por obra da serotonina, que vai sendo produzida dose por dose e distribuída por todo o corpo. O encontro com os amigos sintonizados em torno das mesmas sensações benfazejas, a vegetação com o colorido otimizado pelo brilho da luz solar, o calçamento lavado pelas águas da noite anterior e seco com o calor do astro-rei pela manhã são bênçãos incomensuráveis. De crianças confortavelmente sentadas nos carrinhos de bebê a anciãos apoiados em bengalas, os sorrisos e os cumprimentos se repetem, contagiando metro por metro todo espaço destinado pela administração da cidade ao nosso lazer dominical.
 
                Dessa vez, algo novo atraía mais a atenção. Escondidas nos galhos do arvoredo, à direita e à esquerda da pista, as cigarras comemoravam conosco o dia ensolarado, em perfeita interação. Fiquei atenta para perceber melhor o funcionamento da orquestra, que parecia ter o ritmo sincronizado. Em determinados momentos havia uma interrupção. O som ia diminuindo, diminuindo... até parar quase por completo. De repente, uma maestria dava o tom, reiniciava e o coro crescia, até ficar ensurdecedor.
                A barulheira é o resultado da vibração das membranas existentes no abdômen de centenas delas, ao mesmo tempo.
                No hemisfério sul, esse evento ocorre justamente nos meses de outubro e novembro, quando a primavera e o verão se confundem e as chuvas se instalam. As cigarras surgem do interior da terra e se agrupam nos troncos do arvoredo próximo. Quem canta é o macho, que primeiro se instala nas árvores. Seu canto constitui-se no meio eficaz de atração da fêmea para o ritual do acasalamento, que parece ser um prazer suicida, pois após o ato sexual, ele morre inevitavelmente. As fêmeas fertilizadas permanecem nas árvores, onde põem os ovos, que se transformam em larvas, caem e penetram na terra como se fossem sementes e ali ficam por três ou quatro anos, alimentando-se da seiva das plantas. Quando estão prontas, recomeça o ciclo.
                O habitat original das cigarras é a área rural, para desespero dos agricultores, especialmente dos cafeicultores, porque elas destroem as plantações. No meio urbano, para onde migraram devido aos desmatamentos, costumam ser bem vindas por causa do seu canto, na primavera-verão, desde que se restrinjam às áreas públicas.
 
                O inseto é mesmo objeto de controvérsias. Ganhou fama mundial devido à fábula poética de La Fontaine, “La cigalle et la fourmi”. 
A história da Cigarra, que se divertia no verão enquanto a Formiga trabalhava arduamente para atravessar bem o inverno rigoroso, visa mostrar às crianças que devem ser trabalhadoras, responsáveis e precavidas.
                Lembro-me que, ao final da narrativa, eu ficava com pena da Cigarra friorenta e faminta, sendo expulsa da casa da Formiga, com o rótulo de preguiçosa. Mas canto, alegria e diversão também não são serviços à sociedade?
                Que me perdoe La Fontaine, se a Formiga tinha conhecimento que a Cigarra cantava todo o verão, não teria ela se beneficiado disso enquanto trabalhava?  
 
Cantar é teu trabalho temporário,
Incentivando quem está na lida.
Ganhaste fama de mal funcionário:
Às crianças disseram que tens boa vida.
Resignado, se és macho, segues teu calvário,
Rumo aos encantos da fêmea preferida,
Ainda que o prazer te seja funerário.

 
 
(Texto publicado no Diário de Catalão de 13/12/2006 como estréia da minha Coluna Salve, Salve Natureza).
http://www.sandrafayad.prosaeverso.net/
 
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 28/09/2011
Alterado em 09/10/2020
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