CARTA AO BATUTA
CARTA AO BATUTA
Certa vez, ouvi da minha amiga Filomena algo em que nunca havia pensado. Ela perdera os pais já bem velhinhos. Primeiro o pai, com 97 anos; um ano depois a mãe, com 90. Para consolá-la eu disse que havia sido privilegiada com a presença deles em sua vida por muito mais tempo que outras pessoas.
- Veja meu caso! Perdi minha mãe subitamente aos 63.
Ela retrucou:
- Não sei se isto é melhor ou pior. O fato é que para mim parece mais doído e mais difícil, porque a convivência com meus pais foi também longa.
Não concordo, mas respeito a dor da minha amiga. Perdemos a mamãe muito cedo, mas ela continua presente no nosso dia-a-dia. É verdade que mais se parece com uma em foto em preto e branco ou amarelada, mas está ali viva na memória. É citada sempre que alguém faz ou diz algo que lembra sua curta existência. É referenciada pelos mais velhos para que os descendentes que não a conheceram saibam de onde vem certas características físicas ou certos comportamentos de membros da família. É também citada quando se ouve uma música antiga, que ela cantarolava ou quando se come um dos pratos saborosos que ela nos oferecia. Sempre usamos expressões como “tão ... quanto” ou “quase tão ...quanto”, nunca “melhor que”. Pratos melhores que os dela ? Inexistem. Às vezes se fala dos seus problemas de saúde e se lamenta o fato de a medicina estar ainda tão atrasada naquela época.
Já com você foi diferente. Nós aproveitamos bastante dos 91 anos, dos seus ensinamentos, da sua experiência de vida e ouvimos várias vezes as suas histórias. Seus descendentes o conheceram o suficiente para fazerem parte das rodas em que recordamos sua presença, seus gestos e até imitamos o seu jeito de falar.
- Batuta!
Batuta é uma palavra que significa nome, pai, vovô, bisa. Quando alguém a pronuncia, todos vêem sua imagem imediatamente, sorriem e repetem suas frases de efeito.
Vou lhe contar algo mais. Sua hortinha lá na roça está cada vez mais bela. Tem alface, tomate, pimentão, salsinha, cebolinha, capuchinha, couve. É de impressionar como o seu funcionário cuida bem dela. Os canteiros estão altos, alinhados, limpos, impecáveis. Bem, eles são a sua cara. Não há como negar. Seu quarto continua lá como se você apenas tivesse ido à cidade se consultar, fazer alguns exames e voltar para seu recanto preferido.
Mas o que mais me impressiona é a história que vem sendo construída na Horta Comunitária da cidade. Ela surgiu a partir da limpeza do terreno realizada por você pouco antes da partida. Parece inexplicável o apoio incondicional da imprensa brasileira e estrangeira e dos Órgãos do Governo Federal e Local ao espaço e ao projeto para expandi-la. Eu nem me movo muito pela divulgação. Mas não pense que seu esforço com o rastelo e com as próprias mãos calejadas só receberam louros.
Infelizmente não! Não mesmo. Ih, você nem imagina o tamanho das investidas para acabar com tudo. Primeiro foi uma vizinha do lado esquerdo. Deu até rasgão de roupa, puxão de cabelos, polícia, justiça, processo criminal. Você e as plantas venceram tudo com galhardia e apagaram o fogo da agressora com tanta água que ela quase se afoga junto. Nunca mais falou um A. Só sabemos que ela existe porque eventualmente passa ao longe.
Depois foi um "cavaleiro com esporas" que chegou à direita "marchando" sobre a Horta. Em poucos minutos apareceram literalmente quebrados vários pés de mamão (daqueles que você gostava de ter em casa), pés de funcho, alfazema, cerca de guaco, minhocário. “Foi um ato de vandalismo”, informou o Correio Brasiliense. Dessa vez até chorei, viu?
A grande novidade é que hoje o rapaz anda pisando baixo e cuidando dos interesses da Horta, como limpá-la com as próprias mãos e até indicar pessoas para ajudar com o trabalho de preservação e revitalização.
Como isto aconteceu? Eu não sei. Talvez você saiba.
Ainda tem mais alguns desafetos declarados, outros nem tanto. Há pessoas que acham a Horta horrível e outros que dizem que ela deveria estar na roça. Mas a cada reportagem calam-se mais essas vozes. Em compensação, há centenas de pessoas que a defendem com unhas e dentes, porque entendem a proposta, porque dela se beneficiam ou porque estão tão próximos da natureza como você e a mamãe sempre estiveram. Há também os que aparecem quase do nada em horas cruciais como agora.
Eu andava meio triste, porque via muitas dificuldades para continuar: Bento, o jardineiro se comprometeu comigo e desapareceu; não consegui as caixas para fazer os canteirinhos suspensos; o minhocário tem que ser todo peneirado e refeito; o mural e as plaquinhas tem que ser reconstruídos; muitas plantinhas morreram e algumas espécies estão quase extintas, outras maltratadas com as raízes para fora da terra; a pista nova do vizinho causou erosão no terreno; as curvas de nível estão desmanchadas.
Aí, o que aconteceu? Nada mais nada menos que um telefonema partindo da Secretaria do Meio Ambiente. Resolveram visitar a Horta, para investir em um projeto maior a partir da nossa idéia. A visita já ocorreu e o assunto está em pauta de discussão.
Que tal?
Às vezes afirmo que inexiste algo depois dessa vida. Mas quando vivo situações assim volto a acreditar, até mesmo porque não encontro outra explicação plausível.
Sabe, Batuta, se você e a mamãe não tivessem ido embora, acho que, com a nova ordem que vem por aí, vocês iam construir um novo Brasil com tantas Hortas que o mundo inteiro iria querer conhecê-los.
Pois é, Batuta, agora vale mais quem faz Horta, quem cuida da natureza. Aposto que você achava que isso nunca ia acontecer...
Fique com Deus!
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 24/10/2009
Alterado em 02/11/2009