LINHA DE FERRO:
A DIVISA ENTRE A VIRTUDE E O PECADO
Quando estávamos saindo da infância para a adolescência, o centro da cidade de Catalão (GO) limitava-se ao trecho que ia da Nova Matriz até a “Linha de Ferro” e do Frigorífico, na saída para Goiandira, até a igrejinha de Nossa Sra do Rosário. Quase em frente à Nova Matriz morava um juiz de direito que tinha uma filha loura chamada Letícia e que todos diziam ser linda. Ali naquela área havia apenas a igreja, o colégio dos padres franciscanos – só de meninos - e algumas outras casas próximas. Depois era mato. Se não me engano, o local era conhecido como “o pasto do Pedrinho” de que papai sempre falava. Por lá as meninas não circulavam, mas os meninos sempre aprontavam alguma “arte” e acabavam levando uma surra, quando chegavam a casa.
Lá para os lados da “linha de ferro”, íamos em grupo solicitar prendas para os sorteios e pescarias no tabuleiro de areia, nas épocas das quermesses no Colégio das Freiras (escola só de meninas). A renda das quermesses era para fazer melhorias no Colégio e reforçar os cofres das irmãs agostinianas. Certa vez, as freiras nos “apertaram” exigindo que recolhêssemos mais produtos, já que a arrecadação esteve muito fraca no último evento. Resolvemos subir um pouco além dos limites da estrada de ferro, em direção às casas em ruas sem calçamento, meio ocultas por árvores grandes, nas quais nunca havíamos ido antes. Como as construções eram separadas umas das outras, resolvemos nos dividir para obter melhor resultado do trabalho sem ter que andar muito. Eram mais ou menos duas horas da tarde, sol a pino, eu vermelha que nem pimentão, ainda vestida com o uniforme do colégio, ia batendo de porta em porta por uma das ruas. As meninas tomaram cada qual uma direção diferente. Observei que nas duas primeiras casas as portas nem se abriram, mesmo com a certeza de que havia gente em seu interior e no quintal, onde vi mulheres que estendiam muita roupa de cama; numa outra apareceu apenas o rosto da mulher pela janela entreaberta. Lá de longe eu disse:
- Moça, a senhora pode contribuir com uma prenda para a quermesse do colégio?
- Não, não posso – respondeu secamente, fechando a janela na minha cara.
- Mal-educada, pensei.
Em outra, assim que bati palmas, apareceu uma mulher com um vestido vermelho de seda muito decotado, coberta de adereços brilhantes nos braços, pescoço e cabelos; uma mão na cintura fina e outra com um cigarro enorme e fino aceso. Tive a impressão que viera de outro planeta. Pisquei, balancei a cabeça e me belisquei para ter certeza de que eu estava acordada. Ensaiei o pedido, mas nem consegui abrir a boca porque ela, tirando a cigarrilha comprida dos lábios cor de sangue, soltou uma longa baforada, olhou-me da cabeça aos pés, com um meio sorriso no canto da boca e disse:
- Volta pra casa, menina! Aqui não é lugar para você. Vai, vai logo!
Saí quase correndo à procura das meninas, que já estavam reunidas porque haviam tido experiências semelhantes. Descemos a rua em direção ao centro, assustadas.
Quando contei as ocorrências em casa, ainda levei umas broncas.
- Nunca mais vá para aqueles lados, entendeu?
De tanto insistir em conhecer os motivos da proibição, acabei sabendo que era lá que moravam as “putas” e que aquela área da cidade era denominada de “zona”.
Fato é que a mulher de vermelho não saía da minha memória. Sonhei algumas vezes com ela. Sua imagem se confundia ora com a do demônio, ora com a do seu enorme garfo em brasas.
E o pior é que ela parecia na temer o fogo dos infernos. Para mim, não havia a menor dúvida de que aquelas mulheres estavam condenadas a serem queimadas lá para sempre. Eu não escaparia do purgatório, especialmente agora que me aproximei delas.
Na semana seguinte, fui correndo me confessar ao padre e fazer penitência para me livrar do peso do pecado. Só assim consegui deixar de ter aqueles pesadelos horríveis.
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 20/05/2009