A CAIXA (FINGINDO-ME DE MORTA)
Certa vez um amigo me disse que, em situações adversas ou desvantajosas, sempre que possível, ele se finge de morto.
Esta frase soou como um alerta, suficiente para que eu me decidisse por uma nova postura, perante atitudes baseadas em valores que não consigo compreender.
Nunca me arvorei em empunhar bandeira deste ou daquele comportamento pessoal. Nada mais sou do que uma humilde partícipe onde me cabe estar, e observadora onde não me compete dar “pitaco”.
Claro que isto não me impede de cometer deslizes e erros de avaliação, como todo mundo. Mas não sei se por intuição ou experiência, o fato é que não é necessário muito para eu perceber qual é o caminho escolhido por aqueles que, de alguma forma, devo compartilhar minha vida
Tempos atrás, observei que a vaga da garagem à direita da minha, desocupada há mais de dois meses, havia sido novamente ocupada com um carro de passeio da marca Honda.
No dia seguinte, percebi que havia uma caixa de papelão, medindo mais ou menos 80 cm de comprimento por 60 cm de altura e 30 cm de profundidade, ao lado do veículo estacionado. Não é normal. Porém como haviam sido respeitados os limites demarcados para aquela vaga, entendi que se tratava de uma situação momentânea. Preocupei-me apenas com o fato de vir a haver algum prejuízo ao proprietário. Pensei:
“Se ali dentro houver algo de valor e a pessoa demorar em recolhê-la, corre o risco de não mais encontrá-la, apesar dos sensores de movimentação e presença existentes no local”.
Liguei meu carro e saí.
Na volta, como de hábito, estacionei de ré, pois meu pequeno utilitário é um pouco mais longo que os veículos de passeio. Esta posição mostrou-se mais confortável no momento da saída. Além disso, disponho de espaço maior para o caso de necessitar abrir completamente a porta do motorista, pois entre a minha vaga e a da esquerda há uma coluna de sustentação do prédio, que me proporciona 25 cm de espaço a mais e até me serve de guia.
Nos dias que se sucederam observei que, quando o veículo da direita não estava na vaga, a caixa era movida para os fundos, junto à parede. Caso contrário, era recolocada na mesma posição original, ou seja, ao lado da porta do motorista, que também estacionava de ré.
Em uma manhã de sábado, recebi uma chamada do porteiro pelo interfone:
- Seu vizinho está na garagem e pede para que a senhora desça até lá.
Mesmo sem entender o motivo, desci e deparei-me com um oriental jovem, magro e bem vestido ao lado do meu veículo. Cumprimentei-o e indaguei se ele era a pessoa que havia pedido para que eu descesse. Respondeu que sim. E foi logo adiantando o assunto:
- Como a senhora deve ter observado, meu carro é novo. Sou uma pessoa muito detalhista. Todas as vezes que estaciono ou saio de algum estacionamento, verifico todo o veículo: pneus, lataria, limpador de pára-brisas, espelhos, maçanetas, etc.
E eu, ainda sem entender, continuei ouvindo-o. Aproximou-se mais do seu carro e apontando para a caixa, continuou:
- Hoje pela manhã, por exemplo, notei que havia uma marquinha aqui na minha caixa. Veja! Creio que foi o passageiro do seu carro que, ao abrir a porta, esbarrou nela. Por esta razão, chamei-a aqui para pedir que tenham mais cuidado e avisar que esta caixa está aqui para evitar que a senhora arranhe ou amasse o meu carro.
Olhei bem para a caixa e percebi que, embora estivesse com alguns adesivos e etiquetas, tratava-se de uma caixa vazia.
Nessas alturas, eu já estava nas alturas. Mas respirei fundo e respondi:
-Amigo, em primeiro lugar, há mais de uma semana que ninguém entra ou sai pela porta do passageiro. E eu não passei deste lado do carro. Portanto, a sua acusação é infundada. Por outro lado, a idéia de colocar essa caixa aí me parece excelente, pois assim posso ficar tranqüila quanto ao meu carro. Sugiro que peça ao síndico para repassar a filmagem das câmeras. Pode ser que identifiquem o causador do “amassadinho” na sua caixa.
Despedi-me do cidadão e retornei ao meu apartamento indignada. O tempo foi passando... e outros moradores começaram a indagar o porquê daquela caixa. Um dia, o vizinho da vaga da garagem ao lado direito do Oriental contou-me que ele havia lhe pedido para tomar mais cuidado ao estacionar sua moto, pois poderia causar arranhões ao seu carro novo.
Até hoje a situação persiste. Naturalmente que me incomoda todos os dias ver aquela caixa estacionada ao lado direito da minha camionete. Sinto-me injustiçada e com a minha liberdade tolhida, vigiada.
Penso nos valores desse pobre rapaz. Penso em como estará a saúde dele, quando estiver com a minha idade, se é que chegará lá. Penso naquilo que ele está transmitindo ao filhinho de colo sobre o que é viver em sociedade, o que é importante possuir na vida.
Mas, já que não me compete mudar a situação, copio meu amigo: FINJO-ME DE MORTA.
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 12/04/2006