GRANDE SERTÃO:VEREDAS
I-INTRODUÇÃO
A leitura de GRANDE SERTÃO: VEREDAS é tarefa complexa, talvez em função da narrativa de RIOBALDO, personagem central das tramas desenvolvidas, a qual se faz, não “em linha reta, mas em zigzag, como uma serpente”; com “longos parênteses a fim de refletir sobre a existência do diabo, a amizade, amor e morte, e de enunciar esotéricos postulados religiosos.” *
Para desfrutar do prazer da leitura da obra, impõe-se ultrapassar, como afirmou Guimarães Rosa, dificuldades decorrentes da “utilização de cada palavra como se tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original”, bem como incluir “certas particularidades dialéticas “ da região em que nasceu, a seu ver “ linguagem literária” ainda com sua “marca original”, e “ de uma grande sabedoria linguística”.***
Inúmeros são os leitores que se apaixonam pelo livro, à primeira leitura; para eles, música e poesia. Na verdade deles, o monólogo de RIOBALDO navega nas “águas desse rio sonoro, de curso tumultuado cheio de metáforas, de substantivos, de adjetivos, de expressões, de verbos, moldados, triturados, organizados de tal sorte que adquirem uma soberania própria e não remetem senão à realidade que eles próprios criaram ao longo do relato.”*
Mas, há os que se frustram, por não conseguirem ler o romance, com a fluidez necessária, muitas vezes vencidos pela linguagem que parece hermética, indecifrável mesmo, em razão da ausência de léxicos que os pudessem ajudar.Pergunta-se: poderiam essas dificuldades ser superadas, mediante um tipo de leitura, que, “em vez de se esquivar”, enfrentasse “resolutamente a complexidade linguística do romance”, suas “paisagens inóspitas, a carne, o sangue, os objetos pitorescos”, e entendessem “que a realidade expressa pelo autor nem é material nem histórica, mas abstrata e intertemporal:verbal.”?* Impossível dizer.
II - OS PERSONAGENS
Certamente Riobaldo e Diadorim são as figuras centrais da grande epopeia que é Grande Sertão: Veredas.
Riobaldo, o narrador, é figura ambígua; é homem de paz e de guerra. É meio jagunço; meio cavalheiro. É homem de fé, mas já flertou com o demo, em certa encruzilhada. É o homem das coisas do destino; não das coisas certas. Excelente atirador, “evoca, diante de um ouvinte anônimo,sua perigosa vida de comparsa, lugar-tenente e chefe de bando, nos áridos desertos de Minas Gerais”, “ressuscitando com nostalgia os combates,atos de má-fé, as proezas, as alegrias, os temores que constituíram sua vida passada.”* Sabe que os fazendeiros são definitivos; os jagunços provisórios*.
Em contrapartida, esses aspectos são, de certa forma equilibrados “pela magnificência com a qual ele se estende sobre a vida e a alma do sertão, descrevendo com amor suas árvores, sua flora, sua fauna, seus povoados, suas lendas, e a grande pintura humana composta de temíveis rufiões como João(Joca) Ramiro e Zé Bebelo, ou pavorosos com o os perversos Hermógenes, o belo e ambíguo Diadorim, a furtiva Otacília.”*
É homem cheio de dúvidas, e de algumas certezas; dos pressentimentos; as circunstâncias de momento o comandam. É intuitivo, por natureza. Respeita e admira Zé Bebelo, que foi seu discípulo; sabe-o altamente ambicioso,obcecado pelo exercício de um cargo político; mais leal ao governo do que aos anseios de seus comandados; livra-o da morte certa, ensejando que, em julgamento singular, seja liberado, sob condições, por Joca Ramiro e seus capitães.Reencontra-o, toma-lhe a liderança, quando o sente enfraquecido, por ter conduzido seus homens a luta descabida, de que resultou a perda de tantos. Não sabe muito bem como desempenhar-se dessa liderança, mas procura aconselhar-se com os melhores companheiros, nas decisões mais importantes.Cansado do morticínio e da desgraça que encontra em seu caminho, busca a paz interior, que custa a encontrar, se é que a encontrou. Ama Diadorim, com grande dose de culpa. Sonha com Otacília, numa união que dificilmente será aceita pelo pai da amada, mas não recusa o amor de Nhorinha, Myosotis, Rosu’uarda. Súbita paralisação, o impede de salvar Diadorim, que consegue matar HERMÓGENES, com sacrifício da própria vida. Combalido, sabe afinal que Diadorim, é mulher. E seu sofrimento torna-se mais agudo.
DIADORIM é “homem ou mulher, deus ou diabo” , “ princípio feminino e masculino da tradição literária”, e, “como seu próprio nome sugere, é “ Deus e diabo, luz e trevas, carne e espírito, dor e prazer, homem e mulher..”**
Joca Ramiro, por sua liderança, seu carisma, assemelha-se à figura bíblica de Moisés, aquele que nunca chegará à Terra Prometida, com seus seguidores,no geral gente boa e cheia de esperança. Hermógenes é o cramulhano, “aquele-que-não-existe”, o demo, a personificação do mal; aquele que traiu, mas não foi traído, especialmente por sua mulher, que, conquanto sequestrada e em cativeiro, manteve-se fiel até o fim, nada obstante o ódio que a ele devotava.
GRANDE SERTÃO:VEREDAS
III-A OBRA
Grande Sertão: Veredas pode ser considerado uma epopeia, “esplêndida epopeia, o desenrolar dos costumes do sertão”, “natureza indomada”, cheio de “ personalidades veladas e brutais.”*
O tom sobrenatural da obra resulta, em grande parte, das afirmações obscuras de Riobaldo de que poderia ter concluído, com o diabo, “um pacto durante uma noite de tempestade, em uma encruzilhada de caminhos”-esse mesmo pretenso acordo que lhe teria, em final, garantido invulnerabilidade e sucesso-.
A presença do demônio poderia estar traduzida na “paixão homossexual por Diadorim”, que Riobaldo nutria, assim como “uma armadilha preparada pelo Senhor das Trevas”, e enseja, por outro lado, a conclusão de que “não apenas Hermógenes, o traidor, fosse um instrumento do demônio, mas ainda que JOCA RAMIRO e ZÉ BEBELO, QUELELÉM e RIOBALDO, ele mesmo, e todos os homens; e que “a realidade, em toda a dimensão nada mais seja do que uma projeção do Inferno, o Inferno, ele mesmo.”*
Assim, “a realidade mais profundamente refletida no livro não seria a conduta humana, nem a natureza, nem a palavra, nem a alma* , pois “a odisseia de RIOBALDO carregaria”, “nela, implícita, como um fio secreto que a guia e justifica, uma interrogação metafísica sobre o bem e o mal.”* “Uma máscara atrás da qual se esconde uma demonstração de poderes de Satan sobre a terra e sobre o homem.”*
Outro dia, o Murilo, nosso poeta e crítico, destacava a beleza de Grande Sertão: Veredas, detendo-se sobre sua maravilhosa arquitetura, muitas vezes não devidamente vislumbrada por muitos, da forma,aliás, como Vargas Llosa o percebeu, ao afirmar que a obra de Guimarães Rosa é “ uma torre de Babel miraculosamente suspensa acima da realidade humana, dela destacada e entretanto cheia de vida; um edifício mais próximo da música(ou de uma certa poesia) que da literatura.”*
Para concluir: “GUIMARÃES ROSA escreveu um romance ambíguo, múltiplo, destinado a durar, dificilmente apreciável em sua totalidade, enganador e fascinante como a vida imediata, profunda e inesgotável ,como a realidade, em si mesma
NOTAS
*Prefácio de Vargas Llosa a edição francesa de Grande Sertão:Veredas, sob o título de Diadorim;
**Entrevista concedida por Guimarães Rosa a Günter Lorenz, no Congresso de Escritores Latino-Americanos, realizado em Gênova, no ano de 1965:
***Prefácio escrito por Eduardo F. Coutinho para edição de Grande Sertão:Veredas da Nova Aguilar
Obs.: Publicação autorizada pelo autor do texto.