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Sandra Fayad Bsb
Minhocário de Palavras
Textos

Jornal'Ecos da Literatura Lusófona

Paris & Brasília

25 de Setembro de 2006 - Edição N°49


Vânia Moreira Diniz Sandra Fayad

Jornal Ecos Entrevista a Escritora e Poeta Sandra Fayad

Jonal'Ecos: Fico feliz em entrevistá-la como escritora competente e amiga. Você nasceu em Catalão (Goiás). Poderia falar um pouco de sua infância e qual foi o acontecimento que marcou seus primeiros anos?



Sandra: Obrigada, Vânia. Aqui publiquei minha primeira crônica em julho de 2005, graças à atenção e à confiança quase simultâneas com que o Fernando e você me brindaram. Por esta razão eu os considero meus padrinhos de literatura. Respondendo a sua pergunta, sou a primogênita de seis irmãos. Nasci em casa no dia 15 de fevereiro, em pleno domingo de carnaval. No mesmo dia, nascia também Beatriz, outra primogênita da vizinha, fazendo com que a parteira - tia Mariana , hoje com 96 anos - corresse o tempo todo de um lado para outro. O evento foi triplamente festejado na cidadezinha, que possuía cerca de dez mil habitantes.


Jornal'Ecos: Qual a lembrança mais remota de sua infância e que lembra até hoje?

Sandra: As primeiras lembranças estão associadas a duas perdas importantes.

Logo que nasci, meus pais se mudaram para a fazenda da minha avó materna, que ficava a cinqüenta quilômetros de distância da cidade, com um rio no meio, pelo qual se atravessava de canoa. Era uma região cheia de cobras venenosas. Vovó, viúva ainda jovem, trabalhadora e carinhosa, me paparicava muito. Quando eu estava com dois anos, ela foi picada por uma cobra cascavel. Papai tentou em vão trazer socorro da cidade, enquanto eu assistia à sua morte dolorosa. Não me lembro de detalhes, apenas dos gritos de dor, que foram sumindo, no interior da casa da fazenda.

Aos quatro anos, foi a vez do meu avô paterno, que já era idoso e que nós dizíamos que estava “caduco”. Lembro-me vagamente dele. 


Jornal'Ecos: Como foi seu relacionamento com seus pais e em que eles trabalhavam?

Sandra: Papai abandonou a escola cedo e foi ser pedreiro, profissão da qual sempre se orgulhou. Na fazenda, aprendeu a lidar com gado, agricultura e, por fim tornou-se comerciante. Mamãe era professora rural e tinha postura de nobre. Casaram-se porque as famílias são árabes e assim decidiram. Meus pais brigavam muito, mas se mantiveram juntos por trinta e seis anos, até que mamãe nos deixou subitamente. Na Fazenda, vivíamos sob a chamada economia de subsistência, onde o papel-moeda era raridade. Trabalhava-se na forma de escambo e empreitada. Quase tudo que necessitávamos era produzido ali mesmo, com muita fartura. Quando eu completei sete anos, mandaram-me para a casa dos tios maternos na cidade, para estudar. Assim foi sendo feito com os meus irmãos menores, durante alguns anos mais. Mamãe considerava inadmissível que ficássemos um ano sequer fora da escola regular. Nas férias, voltávamos para a fazenda para ajudar na lida diária. Mamãe dava aulas em um galpão, que o papai construiu ao lado da casa da fazenda, para crianças e adultos desde a alfabetização até a quarta série. Com nove anos, já na terceira série, ela pedia que eu a ajudasse a ensinar os meninos a segurar o lápis e escrever o próprio nome. Eu me sentia poderosa e geralmente ia mais além, lendo a cartilha para eles, que ficavam me ouvindo admirados.

Fomos orientados dentro de padrões rígidos de comportamento, que aceitávamos com naturalidade. Se julgassem necessário, os tios, avós, vizinhos, padre, freira e até eventuais empregados nos aplicavam corretivos, com total apoio dos pais. Não me sentia infeliz ou traumatizada por isso. Às vezes havia exageros, mas meus pais não podiam reclamar porque nós, crianças, estávamos vivendo de favores na casa dos outros.

Aos onze anos, com a casa lotada de sobrinhos, o irmão da mamãe que nos acolhia deu “aviso prévio” aos meus pais quanto a mim e ao meu irmão Carlos, de nove anos.

Então, para que não interrompêssemos os estudos, papai só teve como alternativa levar-nos para o Rio de Janeiro, onde moravam suas irmãs. Lá ficamos dois anos, vivendo uma experiência de difícil adaptação e solitária, apesar de todas as novidades existentes na Cidade Maravilhosa. A saudade da mamãe, dos outros irmãos e dos amigos de infância me levaram a dar os primeiros passos a arte de escrever. Eram cartas que eu nunca mandava e poesias que eu rasgava, para que minhas tias não me considerassem ingrata ou porque não queria revelar meus sentimentos.

Aos quatorze anos, nossa família voltou a se reunir na velha casa onde nasci. Foi uma felicidade enorme trocar o apartamento novinho da Zona Sul do Rio de Janeiro por aquela “tapera” em Catalão. Aprendi na prática que tudo é mesmo muito relativo e que mãe, pai e irmãos são os bens mais valiosos da vida. Talvez por isso tenha dado muitas gargalhadas nessa época, mesmo sem motivos aparentes.



Jornal'Ecos: Da Bossa Nova o que mais lhe encantou e a envolveu?



Sandra: Tudo, durante todo o tempo. Na “tapera” não havia TV, nem som. Mas isto não era problema, porque tínhamos um velho rádio de válvulas. Depois uma amiga ganhou uma vitrolinha manual. Era suficiente para ouvirmos, até “rachar” o disco, a música” Upa Neguinho”, do primeiro LP gravado por Elis Regina e Jair Rodrigues, que estourou em todas as paradas de sucesso. Tornei-me fã de todos os compositores, cantores e bandas (conjuntos ou grupos da época). Era a Bossa Nova e a Jovem Guarda com a riqueza poética e o rock brasileiro enchendo nossas vidas de músicas de amor, protesto e alegria. Sempre gostei de ambos os movimentos. Não dá para enumerar todos os talentos que quarenta anos depois estão atualíssimos, como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Ronado Bôscoli, Edu Lobo, Nara Leão, Dick Farney cantando “Copacabana”, “Chega de Saudades” na voz de João Gilberto, Geraldo Vandré com “Pra não dizer que não falei de flores”, Chico Buarque com “A banda”, Rita Lee, Zimbo Trio, Roberto e Erasmo Carlos, Vanderléia, Martinha, Eduardo Araújo e Silvinha, Jerry Adriane, Vanderley Cardoso, The Golden Boys com “Alguém na multidão”, The Fevers, Renato e seus Blue Caps. Ainda faltam muitos... Havia também os Ritmos Latinos, The Beatles, The Rolling Stones, Elvis Presley.

Ter participado de tudo isso me mantém com a sensação de poder, privilégio e felicidade.



Jornal'Ecos: Quando sentiu necessidade da literatura?



Sandra: Minha adolescência e juventude foram também contemporâneas de grandes questionamentos políticos, sociais e psicológicos em todo o mundo. Mesmo vivendo de forma simples, no interior de Goiás, tive acesso a muita informação. Conseguíamos romances e livros sobre filosofia e política com algum viajante. Normalmente eram passados de mão em mão até todos terem lido. Como tinha que devolvê-los logo, enquanto lia, eu copiava nos cadernos as frases e pensamentos que considerava mais interessantes e que não conseguia decorar. Dali saíram conclusões importantes. O mundo era muito mais que a minha pequena cidade. Era preciso explorá-lo, para entendê-lo e tentar fazê-lo mais justo. Então comecei a traçar planos poéticos e a transportar-me para lugares longínquos.



Jornal'Ecos: Sua formação é nas ciências exatas (economia), porque exatamente a escolheu?



Sandra: Estávamos em plena ditadura, sob a vigência do AI-5. Enquanto ocorriam prisões, torturas, comícios, eu ficava pensando que, se o Brasil explorasse melhor seu potencial agrícola, rapidamente seria um país rico. Com todo o povo trabalhando, estudando, bem alimentado, não teria razões para que estudantes idealistas morressem nas prisões defendendo idéias que, em última instância, eram pregadas por revolucionários, que queriam mesmo era assumir o poder. Percebi que estes quase sempre escapavam das prisões, deixando os estudantes no campo de batalha contra a polícia. Por esta razão, nunca participei de nenhum movimento de protesto, embora não concordasse com a falta de liberdade de imprensa. Eu queria entender o lado prático do Governo Militar: o que estavam fazendo com o dinheiro do povo e quais os planos que eles traçavam para nós, jovens da época. Além disso, o Curso de Economia tem um elenco de disciplinas que permitem uma base mais completa para os programas dos concursos públicos. De fato, foi muito fácil ir passando nos melhores concursos. Tornei-me uma servidora pública, especializada nessa área.



Jornal'Ecos: Quais os autores que mais leu e sentiu que algum deles exerceu influência profunda em seus escritos?



Sandra: Morris West, Kalil Gibran, Gandhi, Malba Tahan, Karl Marx, Mário Simonsen - todos eles me levaram a pensar muito.

Dos quatorze aos dezenove anos, li e anotei em um livro de recordações que ainda guardo, textos de peças de Sheakespeare, Hegel, Lao-tseu, Confúcio, Calderon de La Barca , Nehru, Franz Kafka, Voltaire, Castro Alves, Graciliano Ramos, Ignácio de Loyola Brandão, Fernando Sabino.

Mas acho que as cartinhas tão bem escritas pela mamãe, nas várias situações em que ficamos separadas ao longo da sua curta existência, é que mais me motivaram a escrever.



Jornal'Ecos: Como acontece seu momento de criação? É num momento específico ou simplesmente escreve e vai produzindo?



Sandra: Bem, já conversei com alguns escritores e descobri que o que acontece comigo é bastante comum. Normalmente escrevo a primeira frase e nunca sei onde vou parar. Há dias em que escrevo mentalmente durante as caminhadas matinais. Outras vezes, olho para alguma coisa e faço um verso instantâneo. Se fico muito tempo sem escrever, sinto falta de ar, coceira, insônia.



Jornal'Ecos: Já realizou alguns de seus sonhos ou tem uma idéia mais objetiva de suas realizações?


Sandra: Sou bem humilde quanto a sonhos. Olho para o meu passado e acho que já recebi uma ótima cota de saúde, conforto e realizações pessoais e profissionais. Mas não quero abrir mão de nem um pedacinho do que tenho, porque tudo foi chegando passo a passo, dia por dia e tem muita simbologia envolvida. Do ponto de vista da literatura, não tenho opção: vou escrever até o último dia da minha vida (desejo viver cem anos), mesmo que só os amigos mais generosos leiam. Não importa se farei sucesso ou se me manterei anônima entre tantos outros. Escrever me alimenta e conforta.



Jornal'Ecos: Quando chegou a Brasília o que trazia em seu coração de desejos e o que sentiu na capital do Brasil, com poucos anos de construída? Foram difíceis os primeiros anos?



Sandra: Brasília representava o caminho do futuro e o futuro em si. Era a alternativa. Para mim, não havia outra. A cidade e eu já nos entendemos no primeiro momento, até mesmo porque éramos parte de um mesmo espaço, o esquecido Estado de Goiás. Estávamos começando juntas uma vida nova. Vim para trabalhar, estudar, construir, formar, criar raízes, estabelecer uma plataforma para explorar novos horizontes, como havia poetizado na adolescência. Foi o que aconteceu. Os planos iam sendo colocados em prática paulatinamente. Alguns sofreram atrasos, outros precisaram vencer barreiras, pegar atalhos, contornar, esticar ou encolher, mas nenhum foi abandonado e todos estão concluídos ou em fase de conclusão. Abençoada seja para sempre esta cidade que eu amo de paixão.



Jornal'Ecos: Qual a sua realização mais emotiva e que fez você achar que “vale a pena viver”?



Sandra: Vale sempre a pena viver muito, por muito tempo. Diversas situações me emocionaram e me emocionam. O último ano tem sido extraordinário quanto a isso, Vânia. A começar por você e pelo Fernando, que surgiram do “nada” para me acolher com total desprendimento, carinho e confiança, como se me conhecessem a vida toda. Minha família e meus amigos também são bênçãos maravilhosas, pelas quais agradeço sempre.



Jornal'Ecos: Em sua vida pessoal, foi e é feliz?



Sandra: Tenho quase tudo o que quero. Mas, se não houver uma lacuna a ser preenchida, eu a crio para ter por que lutar. Sou otimista, cordata e calma, mas não gosto de me sentir acuada ou injustiçada. Só preciso ter uma saída de emergência. Minha felicidade está intimamente relacionada com a existência dela. Até hoje, não dei por sua falta na caminhada. Portanto, fui e sou feliz.



Jornal'Ecos: O que á a Literatura para você?



Sandra: Vejo a literatura como um rio, por onde navegam muitos barcos, que se cruzam. Uns vem da nascente, outros da desembocadura. Há os que vem de um mar revolto e os que subiram para os céus, mas continuam navegando. Os barqueiros detêm o conhecimento e a experiência sobre os lugares por onde passaram. Se eles apenas se cumprimentarem e seguirem em frente, não há nada de mal nisso. Mas se resolverem sentar à sombra de uma árvore frondosa e mostrar aos outros, com transparência, beleza e suavidade, os perigos e as maravilhas encontradas no percurso, estarão tornando mais segura e agradável a próxima etapa da viagem dos que se interessarem em ouvi-los. E cada um que fizer isso, será mais sábio e fará mais sábios os que o escutarem.



Jornal'Ecos: Atualmente quais seus sonhos mais freqüentes e o que desejaria e “precisa” realizar?



Sandra: Há um projeto em andamento, que preciso terminar. Trata-se de um livro de contos com as experiências interessantes do papai. Ele está com 91 anos e quer ver suas estórias publicadas. Há também um cantinho em meu coração reservado para o amor.



Jornal'Ecos: Como entrou na Internet e o que acha dessa ferramenta extraordinária?



Sandra: Normalmente planejo, em linhas gerais, as etapas da minha vida. Em janeiro de 2005, vendi a chácara que me tomava muito tempo. Abriu-se então um espaço, digamos que umas férias até a reforma da minha casa, prevista e de fato iniciada em julho.

Comecei então organizar meus textos no word e a participar de uns sites, para preencher o tempo. Em um deles, conheci o Fernando Oliveira. No segundo e-mail, enviei-lhe um poema que acabara de escrever. Então ele me indicou o endereço do Jornal para que eu o conhecesse e o seu e-mail para que eu me apresentasse a você. A acolhida foi inesperadamente maravilhosa. Poucos dias depois, lá estava eu no link “Escritores Amigos” e depois no Jornal' Ecos. Devo tudo a vocês.



Jornal'Ecos: Sandra, Obrigada por sua brilhante entrevista e agora há um espaço ilimitado para que você possa se dirigir aos seus leitores e falar de você, suas esperanças e a forma como as pessoas podem realizar seus objetivos. Agradeço o carinho com que aceitou responder ao Jornal'Ecos do qual você é uma competente colunista.



Sandra: Nada sei e nada posso, se eu quiser nada ser e nada poder. Cada dia que vivo e que presencio os mais variados acontecimentos na vida das pessoas que me rodeiam, mais certeza tenho disso. Não creio em má sorte. Saúde, amor, bom emprego, conforto, poder e honra, com raras exceções, se conquista e se mantém.. Mas a ganância tem se expandido como uma praga, levado as pessoas a quererem o que é dos outros, mesmo que não lhes sirva para nada. Enoja-me saber que alguns seres se julgam tão poderosos a ponto de aplicar blefes internacionais, banalizando as vidas de milhões de inocentes. Revolta-me saber que há outros tantos que lhes dão credibilidade, porque vêem nessa forma de agir um exemplo a ser seguido, para a obtenção de vantagens pessoais. Lamento que tantos inocentes estejam tão vulneráveis a tudo isso. Mas creio na sua capacidade de reagir, através da informação e do esclarecimento, na indicação de uma saída e no oferecimento de uma lanterna acesa por nós, escritores de todas as partes do mundo. Sejamos a gota d’água na pedra dura, sempre.
 

Sandra Fayad Bsb e Vânia Diniz
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 27/04/2007
Alterado em 21/01/2022
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